A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, dance, ria e viva intensamente, antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.

Charles Chaplin

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Síria, Estados Unidos, Rússia e, talvez, um acordo ideológico

Melissa Lima

Mais de 115 mil mortos e 2 milhões de refugiados são o saldo da guerra civil que acontece na Síria, desde o início de 2011. Uma guerra que começou como uma rebelião pacífica na cidade de Daraa, liderada pelos sunitas com apoio da população geral, que exigiam mais democracia, inspirados pela Primavera Árabe no Egito e na Tunísia. No entanto, foi só em agosto deste ano que os acontecimentos na Síria tomaram uma forte repercussão mundial, depois da ameaça de uma possível intervenção dos EUA e seus aliados, que resultou em um acordo entre Washington e Moscou.

Os rebeldes querem a queda de Bashar al-Assad, que assumiu a presidência após a morte de seu pai, Hafez al-Assad, em 2000, dando continuidade ao seu poderio iniciado em 1971. No início, as manifestações não foram bem recebidas pelo governo. Há relatos que crianças foram presas e torturadas após picharem uma frase típica da Primavera Árabe, pedindo a queda do regime. Foi após esse fato que as reivindicações pacíficas se tornaram na guerra que desestabilizou e destruiu a infraestrutura do país, além de ser a mais longa da Primavera Árabe. 

No dia 21 de agosto a suspeita do uso de armas químicas contra a oposição Síria foi o estopim para que Obama anunciasse uma intervenção militar no território Sírio, com o apoio da Grã-Bretanha e França. De acordo com os EUA, mais de 1000 pessoas morreram, de militares à crianças. A suspeita do uso de gases letais foi confirmada pelo ONU em setembro, mas quem os utilizou ainda é incerto. No entanto, o governo americano afirma que o uso partiu do regime Assad, na tentativa de conter os rebeldes. Foi com um discurso moral que "Obama e o secretário de Estado, John Kerry, têm dito que o mundo não pode ficar parado assistindo tamanho sofrimento", como disse o jornalista Mark Mardell da BBC.

Esse discurso moral dos EUA, que tentam impor seus valores ao resto do mundo, levantou outra discussão e rejeição. Como pode um país que já utilizou armas químicas e biológicas, tendo como um dos seus aliados a Arábia Saudita (um dos maiores violadores dos direitos humanos do mundo) utilizar de um discurso moral contra a Síria? É o que discute Vicenç Navarro, sociólogo espanhol. Segundo ele, o verdadeiro interesse americano é recuperar a hegemonia política que seu governo e seus aliados europeus estão perdendo. 

Navarro coloca em pauta a crise do Estado do Bem-estar Social dos EUA e da União Europeia, que tem causado instabilidade nestes países. Por conta dela, a população não deu o apoio que o governo esperava para essa intervenção militar. Estimasse que os EUA gastariam 1 bilhão de dólares atacando a Síria, ao mesmo tempo que cortou gastos do programa Food Stamps, que assiste 20 milhões de crianças.

A preocupação então não é moral, uma vez que programas de bem-estar social estão sendo declinados nos EUA. A intervenção aconteceria por causa da aliança Síria-Irã, apoiada pela Rússia, já que Assad estava recuperando a liderança do país, vencendo a luta contra os rebeldes. Vicenç Navarro disse que o incidente das armas químicas foi como uma desculpa para atacar este governo. “Esse é o objetivo da intervenção: tentar recuperar a hegemonia que o governo federal dos EUA (e da Europa) está perdendo, tanto no exterior como no interior”, afirmou.

O ataque iria acontecer mesmo sem o aval da ONU. Mas os EUA viram suas forças minarem quando o Reino Unido, o maior aliado americano, recuou na decisão de intervir na Síria. O “não” foi decidido no dia 29 de agosto na Câmara Baixa do Parlamento britânico, quando tanto os parlamentares conservadores e o partido trabalhista Labour exigiram provas que armas químicas realmente foram utilizadas pelo regime de Assad.

Os EUA correram atrás de novos aliados, como afirmou Chuck Hagel, ministro da Defesa norte-americana, após o “não” do Reino Unido. A França, porém, continuou firme na decisão de intervir na guerra civil Síria. Aliás, ela foi o primeiro país a reconhecer o apoio aos rebeldes sírios e confessar que fornecia armas a eles. Mas François Hollande se viu isolado quando os EUA também recuaram na decisão, após decisão do Congresso e acordo firmado com a Rússia, principal aliada da Síria.

Foi em um sábado (14/09) em Genebra que John Kerry, secretário de Estado americano, e Serguei Lavrov, secretário de Estado russo, anunciaram qual era o acordo após três dias de negociações. Os países concordaram que todo arsenal químico deve ser destruído até 2014. Caso contrário, uma intervenção militar americana pode acontecer. Os inspetores das Nações Unidas também precisam ter total acesso aos arsenais.

Mas a destruição de todo esse arsenal é ilusória, segundo Olivier Lepick, especialista da Fundação para a Pesquisa Estratégica, de Paris: “Dada a guerra civil, não creio que seja possível destruir o arsenal químico daqui até 2014”, disse. O especialista também afirmou que a Síria não tem nenhuma estrutura para destruir todo esse arsenal, o que custaria milhões de dólares. Nem os EUA e a Rússia conseguiram destruir todas as armas químicas desde os anos 90, mesmo com os bilhões de dólares investidos, mas assinaram esse acordo.


“Um acordo explicitamente limitado às armas químicas equivale a dar a Bachar Al-Assad uma permissão para utilizar misseis, aviões, tanques e artilharia contra seus compatriotas”, disse Jean-Pierre Filiu, historiador do mundo árabe. Ou seja, o acordo pode ser um aval para a utilização discriminada de armas biológicas. Esse seria então um acordo ideológico?

A verdade é que a situação preocupa Israel e todo o Oriente Médio de que esse arsenal caia nas mãos da Al Qaeda, a “força rebelde”. Essa guerra civil pode tornar-se não mais interna, mas espalhar-se por todo o Oriente Médio. Por isso, a dúvida que fica é: será que esse acordo entre Rússia e EUA é apenas ideológico? Será que uma guerra ou uma intervenção militar pode ocorrer a qualquer momento? Uma certeza nós temos: a Síria não cumprirá o acordo até 2014. Será o início de uma nova Guerra Fria?

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